Privilégio Branco: Desfazendo a mochila invisível

Esse artigo é de 1989, da Peggy McIntosh e foi um dos primeiros que eu li sobre privilégios em geral. Abriu meus olhos de forma irreversível, e até hoje não consegui encontrar versão em português para compartilhar, então… Traduzo aqui. A versão em PDF peguei AQUI. (Please, se alguém tiver sugestões para melhorar essa tradução, agradeço muito.)

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Enquanto trabalhava no sentido de trazer materiais dos Estudos de Mulheres para o resto do currículo, eu com frequência percebia a má vontade dos homens em reconhecer que eles eram privilegiados, embora eles possam às vezes admitir que as mulheres estão em desvantagem. Eles podem dizer que vão se esforçar para melhorar o status das mulheres, na sociedade, na universidade, ou no currículo, mas eles não irão e nem quererão apoiar a diminuição dos privilégios masculinos. Negações que se acumulam em tabus em torno do assunto dos benefícios que os homens recebem por conta das desvantagens das mulhores. Essas negações protegem o privilégio masculino de ser totalmente reconhecido, reduzido ou descontinuado.

Pensando no não-reconecido privilégio masculino como um fenômeno, eu percebi que, já que as hierarquias em nossa sociedade interligadas, provavelmente existiria um fenômeno do privilégio branco negado e protegido de forma semelhante. Como uma pessoa branca, eu percebi que fui ensinada sobre o racismo como algo que coloca os outros em desvantagem, mas também fui ensinada a não ver um de seus aspectos corolários, o privilégio branco, que me coloca em vantagem.

Penso que brancos são treinados cuidadosamente para não reconhecer o privilégio branco, assim como homens são treinados para não reconecer o privilégio masculino. Então comecei a questionar como é ter privilégio branco. Comecei a ver o privilégio branco como uma bolsa invisível cheio de espólios não merecidos que eu posso sacar todos os dias, mas sobre o qual eu deveria manter no esquecimento. O privilégio branco é como uma mochila invisível sem peso algum carregada de provisões especiais, mapas, passaportes, senhas, vistos, roupas, ferramentas e cheques em branco.

Descrever o privilégio branco torna a pessoa responsável. Assim como nós nos Estudos das Mulheres trabalhamos para expôr o privilégio masculino e pedir aos homens que abram mão de algum poder, da mesma forma alguém que escreva sobre privilégio branco deve perguntar: “Tendo descrito isso, o que eu farei para diminuir ou acabar com isso?”

Depois que eu percebi a extensão com que os homens trabalham a partir de uma base de privilégio não-reconhecido, eu entendi que muita da sua opressão era inconsciente. Então eu lembrei das frequentes acusações das mulheres negras de que as mulheres brancas que elas encontram são opressoras. Eu comecei a entender porque nõs somos justamente vistas como opressoras, mesmo quando nós não nos vemos dessa forma. Comecei a contar as formas pelas quais eu me aproveito de um privilégio de pele não merecido e fui condicionada a manter a existência disso no esquecimento.

Minha experiência escolar não me deu treinamento para me ver como opressora, como uma pessoa com vantagens injustas, ou como participante de uma cultura danificada. Fui ensinada a me ver como um indivíduo cujo estado moral dependia de sua vontade moral individual. Minha experiência escolar seguiu o padrão que minha colega Elizabeth Minnich apontou:

brancos são ensinados a pensar em suas vidas como moralmente neutras, normativas, e medianas, e também ideais, de modo que quando trabalhamos para beneficiar os outros, isso é visto como um trabalho que irá permitir à eles que sejam mais como nós.

Eu decidi tentar trabalhar em mim mesma pelo menos ao identificar alguns aspectos diários do privilégio branco na minha vida. Escolhi essas condições que penso que no meu caso atacam mais o privilégio de cor de pele do que de classe, religião, status étnico, ou localização geográfica, embora seja óbvio que todos esses outros fatores estejam intrinsecamente entrelaçados. Pelo que posso perceber, meu colega de trabalho afro-americano, amigos e conhecidos com quem eu tenho contato diário ou frequente nesse momento, lugar e lina de trabalho podem não vivenciar muitas dessas condições.

1. Se eu desejar, consigo estar na companhia de pessoas da minha raça a maior parte do tempo.

2. Caso eu precise me mudar, posso seguramente alugar ou comprar uma casa em uma área que eu possa pagar e onde eu queira viver.

3. Posso me sentir segura de que meus vizinhos em tal lugar irão ser neutros ou agradáveis comigo.

4. Posso fazer compras sozinha a maior parte do tempo, sabendo que não serei seguida ou assediada.

5. Posso ligar a televisão ou abrir a primeira página do jornal e ver pessoas da minha raça amplamente representadas.

6. Quando me falam da minha identidade nacional ou sobre “civilização”, sou mostrada que pessoas da minha cor fizeram do meu país o que ele é.

7. Posso ter certeza que meus filhos receberão materiais curriculares que atestam a existência da raça deles.

8. Se eu quiser, posso com facilidade encontrar um editor para esse artigo sobre privilégio branco.

9. Posso entrar em uma loja de música e encontrar música da minha raça representada, em um mercado e encontrar as comidas básicas que fazem parte da minha tradição cultural, em um cabeleireiro e encontrar alguém que saiba cortar meu cabelo.

10. Posso usar cheques, cartões de crédito ou dinheiro em espécie e contar que a minha cor de pele não vai prejudicar minha aparência d rentabilidad financeira.

11. Consigo proteger meus filhos a maior parte do tempo de pessoas que podem não gostar deles.

12. Posso falar palavrões ou me vestir com roupas de segunda mão, ou não responder cartas, sem que as pessoas atribuam essas escolhas à baixa moral, pobreza ou analfabetismo da minha raça.

13. Posso falar em público para um grupo masculino poderoso sem colocar minha raça em julgamento.

14. Posso me dar bem em uma situação desafiadora sem que digam que o crédito é da minha raça.

15. Nunca sou chamado a falar em nome de todas as pessoas do meu grupo racial.

16. Posso ignorar a língua e os costumes das pessoas de cor que constituem a maioria do mundo sem sentir culpa nenhuma por tal ignorância.

17. Posso criticar nosso governo e falar sobre o quanto eu tenho medo de suas políticas e comportamentos sem ser visto como excluído culturalmente.

18. Posso me sentir segura de que, quando eu pedir para falar com o responsável, vou encontrar uma pessoa da minha raça.

19. Se um guarda de trânsito me pede para parar ou se um fiscal da receita auditar meus impostos, posso seguramente saber que tal decisão não ocorreu por conta da minha raça.

20. Posso facilmente comprar pôsteres, cartões postais, livros de fotos, cartões de aniversário, bonecas, brinquedos e revistas infantis com fotos de pessoas da minha raça.

21. Posso ir para casa depois de reuniões de organizações às quais pertenço me sentindo acolhida, ao invés de fora do meu lugar, subrepresentada numericamente, não ouvida, mantida a distância, ou temida.

22. Posso aceitar um emprego em um empregador que aplica ações afirmativas sem que meus colegas de trabalho suspeitem que eu tenha conseguido tal emprego por causa da raça.

23. Posso escolher acomodações públicas sem temer que as pessoas da minha raça não poderão entrar ou serão destratadas nos lugares que eu escolhi.

24. Posso ter certeza que se eu precisar de ajuda médica ou legal, minha raça não trabalhará contra mim.

25. Se meu dia, semana ou ano está indo mal, não preciso questionar se cada episódio negativo tem um subtexto racial.

26. Posso escolher um corretivo ou curativo cor “da pele” e saber que ele mais ou menos vai ter o mesmo tom da minha pele.

Eu repetidamente esqueci cada conclusão dessa lista até que a escrevi. Para mim o privilégio branco tornou-se um assunto esquivo e fugidio. A pressão para evitá-lo é grande, já que ao encará-lo eu preciso desistir do mito da meritocracia. Se essas coisas forem verdade, esse país não é tão livre assim; a vida de alguém não é o que a pessoa faz dela; muitas portas se abrem para certas pessoas sem que elas tenham virtude alguma.

Ao desfazer essa mochila invisível, eu listei situações de experiências diárias que uma vez eu já levei como naturais. Nunca pensei em nenhuma dessas gratificações como ruins para quem os possui. Agora acho que precisamos de uma taxonomia do privilégio mais finamente diferenciada, já que algumas dessas experiências são exatamente o que qualquer pessoa gostaria que todos tivessem em uma sociedade justa, e algumas pessoas se permitem ser ignorantes, arrogantes e destrutivas.

Vejo um padrão ocorrendo através da matriz do privilégio branco, um padrão de presunções que foram passadas para mim como pessoa branca. Havia um pedaço principal de grama cultural; era minha própria grama, e eu estava entre aqueles que podiam controlar a grama. Minha cor de pele era um trunfo para qualquer movimento que eu fui educada a querer fazer. Eu poderia pensar em mim como integrante em muitas maneiras, e fazer com que os sistemas sociais trabalhasem a meu favor. Eu poderia livremente denegrir, temer, negligenciar ou ignorar qualquer coisa que estivesse fora das formas culturais dominantes. Sendo da cultura principal, eu também poderia criticá-la livremente.

Proporcionalmente, enquanto se fazia com que meu grupo racial se sentisse confiante, confortável e esquecido, outros grupos da mesma forma eram feitos inseguros, desconfortáveis e alienados. A branquitude me protegeu de muitas formas de hostilidade, estresse e violências, que eu estava sutilmente sendo treinada a cometer sobre pessoas de cor.

Por essa razão, a palavra “privilégio” agora parece ser ilusória. Nós geralmente pensamos em privilégio como sendo um estado favorável, seja ele merecido ou concedido por nascimento ou sorte. Ainda assim, algumas das condições que eu descrevi aqui trabalham sistematicamente para desempoderar certos grupos. Tal privilégio simplesmente atribui dominância por conta da raça ou sexo de alguém.

Eu quero, então, distinguir entre força merecida e poder não-merecido concedido sistematicamente. Poder de um privilégio não-merecido pode parecer força quando na verdade é apenas permissão para escapar ou dominar. Mas nem todos os privilégios da minha lista são inevitavelmente danosos. Alguns, como a expectativa de que os vizinhos serão decentes com você, ou que a sua raça não irá trabalhar contra você em um processo judicial, deveriam ser a norma em uma sociedade justa. Outras, como o privilégio de ignorar pessoas com menos poder, desfiguram a humanidade dos recipientes assim como dos grupos ignorados.

Podemos pelo menos começar distinguindo as vantagens positivas que nós podemos nos esforçar para espalhar, e tipos negativos de vantagens que a não ser que rejeitadas irão sempre reforçar nossas hierarquias atuais. Por exemplo, o sentimento de pertencimento ao círculo humano, como os nativos americanos dizem, não deveria ser visto como o privilégio de alguns. É uma vantagem não-merecida e dominação concedida.

Eu conheci muitos poucos homens que são verdadeiramente angustiados com relação a vantagem masculina sistêmica, não-merecida. E então uma questão para mim e para outros como eu é se vamos nos sentir realmente angustiados, ou mesmo revoltados, com relação a vantagem branca não-merecida e dominação concedida, e o que vamos fazer para diminuir isso. De todo modo, precisamos trabalhar mais para identificar como ela afeta nosso dia-a-dia. Muitos, talvez a maioria, de nossos estudantes brancos nos Estados Unidos pensa que o racismo não os afeta porque eles não são pessoas de cor; eles não vêem a “branquitude” como uma identidade racial. Além disso, já que raça e sexo não são os únicos sistemas de vantagem operando, precisamos similarmente examinar a experiência diária de ter vantagem etária, ou vantagem étnica, ou habilidade física, ou vantagem relacionada a nacionalidade, religião ou orientação sexual.

São muitas as dificuldades e perigos em torno da tarefa de encontrar paralelos. Já que o racismo, o sexismo e o heterossexismo não são a mesma coisa, o sistema de vantagens associados a eles não deveria ser visto da mesma forma. Ademais, é difícil desemaranhar os aspectos de vantagens não-merecidas que repousam mais em classe social, classe econômica, raça, religião, sexo e identidade étnica do que em outros fatores. Ainda assim, todas as opressões se interligam, como o Combahee River Collective Statement de 1977 continua a nos lembrar eloquentemente.

Um fator parece claro sobre todas as opressões interligadas. Elas tomam tanto formas ativas que nós podemos ver quanto formas subliminares que, por ser membro do grupo dominante, somos ensinados a não ver. Em minha classe e lugar, eu não me via como racista porque eu fui ensinada a reconhecer racismo somente como atos individuais de maldade por membros específicos do meu grupo, nunca em sistemas invisíveis concedendo dominância racial não-solicitada ao meu grupo desde meu nascimento.

Reprovar o sistema não será o suficiente para mudálo. Fui ensinada a pensar que o racismo acabaria quando os indivíduos brancos mudassem suas atitudes. Mas uma pele “branca” nos Estados Unidos abre muitas portas para brancos quer nós aprovemos ou não a forma com que a dominação foi concedida a nós. Atos individuais podem agir como paliativo, mas não vão acabar com esses problemas.

Para redesenhar sistemas sociais primeiramente nós precisamos reconhecer suas colossais dimensões que não são vistas. Os silêncios e negações que rodeiam o privilégio são a ferramenta política chave aqui. Eles mantém incompletos os pensamentos sobre igualdade e eqüidade, protegendo as vantagens não-merecidas e a dominação concedida ao transformá-los em assuntos tabu. A maioria das falas dos brancos sobre igualdade de oportunidades parece agora para mim serem como igualdade de oportunidades para tentar chegar a certa posição de cominação enquanto nega-se que o sistema de dominação existe.

Parece para mim que o esquecimento da vantagem branca, como o esquecimento da vantagem masculina, é mantido fortemente inculturado nos Estados Unidos de modo que se mantenha o mito da meritocracia, o mito de que a escolha democrática é igualmente disponível para todos. Manter a maioria das pessoas ignorantes de que a liberdade de ação confiante está lá apenas para um pequeno número de pessoas sustenta aqueles no poder, e serve para manter o poder nas mãos dos mesmos grupos que já possuem a maior parte dele.

Embora a mudança sistemática leve muitas décadas, há algumas questões prementes para mim e eu imagino que para outros como eu se nós aumentarmos nossa consciência gratificações de ser de pele clara. O que faremos com tal conhecimento? Como sabemos por vermos a mim mesma, é uma pergunta aberta se iremos escolher usar a vantagem não-merecida para enfraquecer os sistemas ocultos de vantagens, e se iremos usar nosso poder arbitrariamente concedido para reconstruir os sistemas de poder sobre uma base mais ampla.

3 comentários sobre “Privilégio Branco: Desfazendo a mochila invisível

  1. Este artigo é uma enorme amontoado de asneiras e infelizmente influenciou muito a academia e consequentemente as pessoas. É óbvio que se uma raça é majoritária ela vai encontrar mais similaridades com ela na sociedade. É só emigrar para à Nigéria e vai encontrar o contrário ou então esperar 2042 quando, por exemplo, nos EUA de onde vem este artigo, a raça branca for minoritária.

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