Fazendo Gênero – Sarah Schulman

Preciso compartilhar a conferência de encerramento da Sarah Schulman no Fazendo Gênero 10 aqui porque tenho medo de nunca mais encontrá-la no Facebook. Grifos meus.

Conferência de Encerramento: “Desafios do Feminismo: Amigos diante da Família, Sociedade diante do Governo.”
Santa Catarina, Brasil – 20 de Setembro de 2013.

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Queridas Amigas e Queridos Amigos,

Muito obrigada por esta oportunidade incrível e pela honra de conhecê-las/los, de visitar o Brasil pela primeira vez e de compartilhar com vocês algumas de minhas experiências e insights sobre o momento em que nos encontramos.

O tema escolhido é “Desafios dos Feminismos” e eu tenho que me perguntar “o que não é um desafio do feminismo?”. Não estamos falando apenas sobre como as mulheres vivem e se sentem, mas também estamos – agora – usando a palavra para significar um sistema de valores, uma forma de fazer as coisas. Nesse sentido, quando olhamos a materialidade das vidas das mulheres ao redor do globo, vemos uma exclusão contínua do poder. Mas também, quando olhamos a metodologia humana, em geral, vemos um eclipse de justiça do âmbito governamental ao pessoal.

Assim, no longo período que levei para preparar essa conferência, decidi que quero me focar nas dramáticas transformações ocorridas no Movimento Gay/Movimento LGBT/Movimento Queer, em um curto período de tempo, e suas relações com o feminismo. Como se desenvolveram conceitos e auto-conceitos que eclipsam/apagam o “feminismo” – um sistema enraizado na justiça, em oportunidades e acessos iguais, e no valor tanto do individual como da comunidade. Algumas dessas idéias já estão em circulação e outras são novas. Algumas são sólidas e outras provisórias/experimentais. De antemão sou muito grata à atenção de todas e todos e espero ansiosa o debate e nossa discussão.

Em resumo, quero mostrar como o movimento LGBT se afastou do feminismo, e se deslocou em direção ao nacionalismo e ao aparelho de estado. E o que é orgânico a esse deslocamento é a manipulação das políticas do medo. O que é uma alegoria comum na experiência de outros grupos à medida em que passaram da opressão generalizada à dominância seletiva.

Houve um tempo, não muito distante, em que as pessoas queer ocupavam o lugar mais baixo em qualquer sociedade. Tenho cinquenta e cinco anos e talvez algumas de vocês também se lembrem quando globalmente todas as pessoas queer viviam na ilegalidade. Foi sem dúvida a minha geração que foi assolada pela experiência massiva da morte pela AIDS, um cataclisma histórico causado pela indiferença e negligência governamental. E algumas e alguns de vocês estão vivendo hoje em países onde essa epidemia continua sem diminuição por causa da ausência de vontade política para que todos os seres humanos tenham acesso igualitário ao tratamento médico padrão. Esses tratamentos foram instaurados pela força dos movimentos ativistas anti-AIDS dos anos 1980 e 1990 – nos quais grupos marginalizados de pessoas, sem quaisquer direitos, abandonados por suas famílias e governos, e enfrentando uma doença terminal, se juntaram para forçar suas sociedades a se transformarem, contra a vontade – dessa forma salvando suas próprias vidas. Mas mesmo que este movimento inédito que transversalizou classes sociais, gêneros e raças tenha sido bem sucedido ao forçar a criação de tratamentos eficazes, eles não puderam transformar o sistema de classe global, e ainda hoje as pessoas continuam a sofrer da doença do HIV, quando esse sofrimento é completamente desnecessário. Acho, ainda, que todas e todos nós entendemos que a omissão inicial governamental no Ocidente esteve enraizada na idéia de “comunidades afetadas” [NT: no Brasil, “grupos de risco”]: os pobres e os queer, que não mereciam a proteção de seus governos e não mereciam viver. Não tínhamos cidadania.

Enquanto muitas pessoas queer – em todos os lugares – continuam ainda hoje a enfrentar graves perigos – de parte de seus governos, de suas famílias, dos sistemas de lazer/mídia/propaganda – temos ainda um novo fenômeno simultâneo no qual alguns elementos da comunidade queer global ganham direitos suficientes para se colocar em situações de igualdade com pessoas heterossexuais de sua mesma raça e classe social.

E acho que esse é o momento certo para examinarmos as consequências dos deslocamentos desiguais em direção à igualdade. Pois vamos compreender que, da mesma forma como ocorreu com as pessoas vivendo com AIDS – o acesso continua restrito pela classe, raça e gênero, de forma que as soluções há muito tempo desejadas e pelas quais pessoas tão diversas lutaram, estão criando condições profundamente desiguais que pioram as vidas de algumas e alguns de nós, ao mesmo tempo em que transformam os valores daquelas e daqueles que tem o acesso.

Então comecemos com o porquê que fizemos isso, porque foi criado um movimento Gay/LGBT/Queer em primeiro lugar.

Se retornarmos no tempo, podemos nos lembrar que essa formação política era originalmente intitulada o “Movimento de Liberação Gay”. A palavra “liberação” foi explicitamente escolhida para nos situar no interior do continuum de movimentos globais de liberação que floresciam naquele período (anos 1960) contra o imperialismo e o colonialismo. O objetivo do Movimento de Liberação Gay era a transformação social. Queríamos um mundo onde a sexualidade, o gênero e as estruturas emocionais fossem abertas e individuais, e não punidas pelo estado ou impostas pelo estado. 

Em 1981, o reconhecimento da crise da AIDS transformou essa situação em muitos sentidos, detalhados em meu livro “The Gentrification of the mind: witness to a lost imagination” – mas muito numerosos para serem apresentados aqui. Mais importante, a repentina e incontrolável visibilidade de centenas de milhares de pessoas morrendo, muitas vezes nas ruas, fez com que a negação ativa da homossexualidade não pudesse mais ser sustentada. A mídia hegemônica foi forçada a reconhecer a existência da homossexualidade e teve que se confrontrar com movimentos radicais como a ACT UP – Coalizão Anti-AIDS pela Liberação do Poder – cujas manifestações incluiram a interrupção de uma missa com 7000 pessoas na Catedral de Saint Patrick. Isso fez com que a mídia tivesse a necessidade de produzir um tipo de homossexual que eles pudessem representar, que não ficasse fora dos padrões do status quo. Então, a partir do início dos anos 1990, a mídia começou a construir sua falsa imagem pública da homossexualidade – em que selecionavam e promoviam figuras públicas que não vinham dos movimentos de base – e, ao invés disso, se opunham às políticas de Liberação Gay.

Dessa forma, a Liberação Gay, através do espaço da mídia hegemônica, foi substituída pelos Direitos Gays. Os direitos gays, sendo um movimento com objetivos opostos à liberação gay – Direitos Gays eram um movimento a favor da tolerância, enraizados na contenção legal, na qual as pessoas gays buscavam “direitos iguais” em todas as esferas de nossas vidas que possam ser reconhecidas e familiares à maioria heterossexual, e abandonaram as arenas da diferença. Também houve um profundo e traumático elemento psicológico nessa transição. Pois a comunidade fora devastada pela morte e sofrimento massivos de seus membros e igualmente, penso eu, pelo indiscriminado abandono dessas pessoas em sofrimento e em situações de morte por seus governos e suas famílias. Dessa forma a transformação de liberação para direitos foi parcialmente uma expressão do trauma da AIDS, do medo de não sobreviver e do desejo consciente e inconsciente de assimilação protetora. Como detalhei no meu livro “STAGESTRUCK: Theater, AIDS and the Marketing of Gay America”, nesse período, grandes corporações, que tinham sido forçadas a reconhecer pessoas queer por causa da visibilidade da AIDS, agora começaram a cinicamente criar nichos de mercado para pessoas queer. O que começou como campanhas de marketing hegemônicas para medicamentos para a AIDS, se tornaram estruturas então usadas para nomear produtos, uma vez que os marketeiros descobriram que as pessoas LGBT eram “os consumidores de marcas mais leais dos Estados Unidos”. Nossas famílias não se preocupavam se vivíamos ou se morríamos, nossos governos não se preocupavam se vivíamos ou se morríamos mas Absolut Vodka nos desejava, e éramos muito gratos.

Dessa forma, houve uma transformação significativa na qual o movimento gay não era mais sobre nossa luta para transformar a sociedade, e sim sobre a luta da sociedade para nos transformar.

Com o prosseguimento da agenda legalista de direitos gays, e à medida que diferentes tipos de direitos gays e diferentes graus de direitos gays começaram a serem aprovados em certos países, ou cidades ou estados, um novo processo foi iniciado, no qual alguns elementos da comunidade LGBT passaram a ter acesso ao aparelho de estado, à polícia e aos poderes de punição e execução – contra outros elementos da comunidade LGBT que ainda não podiam acessar essas forças. E assim nos vimos passar de uma comunidade na qual todos e todas estavam na ilegalidade, e na qual estávamos no lugar mais baixo da escala social, para uma comunidade na qual algumas e alguns de nós – abertamente pessoas queer – temos agora o poder do grupo dominante em sociedades profundamente injustas. E, de forma muito interessante, profundamente enraizadas nessas desigualdades grosseiras estão as políticas do “medo”, do “trauma” e da “segurança”.

Como vejo, as três principais arenas nas quais esse acesso à punição do estado é garantido a pessoas abertamente queer são: a criminalização do HIV, a política queer pró-família e a cidadania queer.

Comecemos com a questão da Cidadania.

E podemos usar um termo cunhado pela professora da Rutger, Jasbir Puar: “Homonacionalismo”

Acontece que, em alguns lugares no mundo, a homofobia foi a única coisa que impediu que algumas pessoas gays alcançassem todos os privilégios culturais dominantes em sociedades desiguais. Isso é particularmente evidente nos países da Europa Ocidental, onde pessoas gays brancas receberam absolutamente o mesmo acesso igualitário que pessoas brancas heterossexuais, começando a participar – como pessoas assumidamente gays – nos sistemas de supremacia racial e religiosa dos quais talvez tenham anteriormente sido excluídos por conta da homofobia. Nesse sentido, na Holanda, por exemplo, estamos vendo um número crescente de holandeses brancos e queers se unindo aos grupos de direita anti-imigração. A maioria focados na supremacia cristã contra os muçulmanos – sabendo muito bem, é claro, que existem pessoas queer dentre as comunidades de refugiados e imigrantes e dentro das comunidades muçulmanas. Similarmente na Grã-Bretanha vemos grupos como o racista “English Defense League” [t: Liga da Defesa Inglesa] tendo uma coluna abertamente LGBT. Em Israel, vemos um movimento judeu LGBT muitas vezes em cumplicidade com a Ocupação Palestina e com discrepâncias similares ao apartheid em direitos legais. De fato, com exceção da China, quase todos os movimentos seculares de direita não mais se opõem aos direitos gays. Realmente a única oposição aos direitos gays no mundo hoje é religiosa. Então vemos que movimentos racistas comprometidos em usar sua cidadania para levar o governo a punir ou prejudicar imigrantes, refugiados, pessoas em situação de ocupação e muçulmanos, estão agora incluindo pessoas queer nos dois lados da equação.

Nos Estados Unidos, por exemplo, o repúdio à “don’t ask, don’t tell” [t: não pergunte, não fale] ofereceu às pessoas LGBT “cidadania”, ou seja, o direito a servir no exército como abertamente gay em troca da participação nas guerras imorais e ilegais contra muçulmanos no Iraque e no Afeganistão.

Assim, estamos vendo uma tendência no Ocidente onde às pessoas LGBT é oferecida uma plena cidadania abertamente gay que as permite excluir, punir e até mesmo matar outros com a total cooperação e encorajamento do Estado.

Então essa é a primeira nova divisão na comunidade queer entre acesso ao aparelho de estado para punição e estar na ponta receptora da punição – nesse caso entre cidadãos e não-cidadãos. E nesses casos as pessoas na posição cultural dominante, aquelas que podem prejudicar – usam o argumento do medo, dizendo que estão com medo – que elas estão com medo de imigrantes, refugiados, trabalhadores extrangeiros, que elas estão com medo dos muçulmanos, árabes, palestinos, que elas estão com medo dos “terroristas” como justificativa para usar o aparelho de estado para evitar e punir com violência, encarceramento e expulsão.

Antes de continuarmos, pausemos um momento para pensar sobre esse conceito de políticas do “medo” no qual um grupo privilegiado – e tem que ser um grupo, uma patologia de grupo, uma multidão, porque indivíduos não podem punir no sentido que grupos que fazem bullying o fazem – onde um grupo dominante pode dizer que está com medo de forma a conspirar contra ou punir pessoas que estão realmente em perigo.

Qual a origem disso? Algo aconteceu no discurso popular, e eu não sei quais são as raízes históricas disso – em que se uma pessoa diz que está com “medo” ela tem o direito de causar dano. O conceito de “espaço seguro” costumava ser usado para os que viviam na ilegalidade, mas agora aqueles ou aquelas de nós que se tornaram dominantes continuam a usar essa retórica para reprimir a alteridade [t: outridade]. Ela é usado pelos dominantes para reprimir o desconforto com a realidade das outras pessoas, para apagar as nuances, as múltiplas experiências e o direito humano inerente de ser escutado. Ao invés disso, considera-se uma vitimização o simples fato de não seguir as ordens da pessoa culturalmente dominante que “sente” ou fala que “se sente” em perigo. Mesmo sabendo que determinar punições com base em “sentimentos” de uma parte é a essência da injustiça.

Deixe-me parar aqui para falar sobre justiça. Para falar sobre valores feministas.

Uma transformação justa é feita no nível governamental da mesma forma que é feita no nível pessoal. A transformação justa é feita quando todos os lados afetados são levados em conta. A injustiça é por definição unilateral.

Um espaço seguro pode significar estar livre de uma violência real. Mas o que acontece quando a “coisa” da qual você quer estar seguro não tem nada a ver com violência? A reivindicação por “segurança” quando não há violência envolvida pode significar a separação de pessoas que você não quer reconhecer como igualmente humanas. Em termos emocionais, você pode querer que elas sejam silenciadas ou removidas porque elas sustentam visões opostas à sua ou deixam você desconfortável, fazem com que você se questione, dizem a você que suas ações têm consequências nos outros. Sim, esse desejo de não questionar seus próprios conceitos pode ser chamado de “ter medo”. Em termos sociais esse outro ser humano pode amedrontá-lo por conta do seu racismo, por conta do seu temor da diferença, porque você tem medo das pessoas que têm problemas, porque elas são ostracizadas e você tem medo de ser ostracizado. Assim como o estado silencia e pune, pessoas com acesso ao estado podem estender seu poder e fazer o mesmo. E isso agora pode incluir algumas pessoas abertamente gays.

O melhor debate conhecido nessa questão é em torno dos “discursos de ódio” e da legislação dos “crimes de ódio”, em que nós que já fomos vitimizados pelo estado, agora temos acesso ao aparelho de estado para restringir os discursos de outros e puní-los por expressarem idéias que não gostaríamos que eles tivessem. Mas quanto mais poder de estado as pessoas gays podem acessar, mais esse modelo amplia suas implicações.

Como feministas, acreditamos que todos os seres humanos, pelo fato de terem nascido, merecem cuidado e oportunidades. É nossa responsabilidade entender que dinâmicas podem ser prejudiciais. Nosso trabalho é reduzir o dano em seu sentido amplo. Inerente a esse objetivo está o conhecimento de que todos os seres humanos merecem ser ouvidos e levados em consideração.

No nível governamental rejeitamos a dicotomia insider/outsider [t: de dentro/de fora] pela qual os cidadãos são superiores e humanos ao passo em que os não-cidadãos ou os residentes de nações com menos poder deveriam servir e alimentar aqueles de nós que estamos em nações mais poderosas. Rejeitamos isso porque fere as pessoas que estão “fora”, e privilegia as pessoas que estão “dentro”.

Da mesma forma, deveríamos perguntar o mesmo sobre as famílias. O maior desafio do feminismo sempre foi e continua sendo a família. E o fato de que a família é queer, não a isenta o feminismo dessa verdade.

À medida que a ideologia pró-família passou a dominar as comunidades queer, estamos rapidamente esquecendo tudo o que aprendemos sobre a família quando ainda éramos feministas e examinávamos como as instituições afetam as mulheres.

Quais são as políticas de protecionismo em um ambiente onde a comunidade queer é agora dominada por uma política pró-família e pró-natalidade? E, ao mesmo tempo, tem mais acesso a e mais tranquilidade em lidar com o Estado, com a lei e com modos oficiais de fazer valer a lei e de punir. Com esse deslocamento em direção à dominância surge uma nova relação com o governo, pois a família tem uma relação com o estado que o indivíduo não tem. Famílias e governos compartilham a lei e o poder de aplicá-la, que os indivíduos e as comunidades não têm. À medida que muitos queers se sentem cada vez mais “normais”, eles se sentem mais identificados com o Estado, e mais dispostos a chamar o Estado para punir em seu nome. O discurso da segurança, perigo e proteção pode cada vez mais se tornar o lugar de intersecção do Estado e da Família contra o individual.

O que acontece quando as famílias são corruptas? O que acontece quando os sistemas familiares inflam o poder de alguns membros e destroem a vida de outros? Quem então é responsável? Quem deve prestar contas? De quem é a função de intervir?

Quanto mais poder e centralidade tem a família na vida queer – mais consequências os sistemas familiares disfuncionais têm na comunidade mais ampla. Agora é o momento para uma discussão aberta sobre a responsabilidade dos amigos queer na construção de respostas aos sistemas familiares que são corruptos, ou como nós educadamente chamamos, “disfuncionais”.

Essa é uma discussão altamente complexa a qual eu posso apenas introduzir de maneira preliminar nessa noite, porque a união entre a família, o estado e as políticas de “proteção” nos traz questões absolutamente cruciais sobre ansiedade, medo, trauma, projeção e todas as questões emocionais por detrás da família, da dominação e da segurança.

Então, temos um desafio enorme agora que a comunidade de amigos queer está enfrentando uma profunda transformação pela ideologia queer pró-família. Uma ideologia que constrói o fato de que as pessoas se relacionam como uma importante estrutura legal e social de “proteção” na qual os “de fora” são uma “ameaça”. Essa é a mesma construção que vitimizou muitos de nós de maneiras fundamentais em relação às nossas próprias famílias. Para que não esqueçamos.

A política pró-família na comunidade queer sobrepujou um monte de coisas que nós já havíamos entendido mas que não mais lembramos. O cuidado das crianças é privatizado ao invés de coletivizado. Nossos entendimentos sobre o consumismo da vida privatizada foi esquecido. Perdemos muito terreno imaginativo e também muito de nossa complexidade emocional ao discutir e entender relacionamentos. Mais importante, as idéias sobre pais e mães perfeitos, crianças ideais e o romance de conto de fadas causaram grandes prejuízos a muitos de nós. Na construção da maternidade – a idéia do que é uma boa mãe, predomina ainda o modelo de sacrifício pessoal. Queerizar a família não transformou a principal expectativa das mães como mártires. Que direitos emocionais têm as mães queers diante dos filhos adultos? Especialmente filhos adultos homens? Se espera que elas sacrifiquem tudo para sempre? Como as diferenças salariais entre mulheres e homens se resolve em famílias queer? E os pais gays e as barrigas de aluguel? A contratação de mulheres para o cuidado das crianças? Existem muitos tipos de ansiedades, projeções e pensamentos distorcidos envolvidos em nossos conceitos de parentalidade. O fato de que são pessoas queer que estão fazendo isso não torna essas questões menos prejudiciais aos membros da família. E, mais importante, as famílias queer DEVEM prestar contas sobre as consequências de suas disfunções na comunidade mais ampla de amigos queer, da qual ainda fazem parte.

Agora, famílias e governos têm relações especiais de coação e também operam conforme modelos semelhantes na oposição “de dentro”/“de fora”.

Certamente quando o governo e a família são bem sucedidos e seus membros prosperam, há uma necessária exclusão de outros. Cidadãos e membros de famílias são privilegiados em detrimento de outros de forma que cidadãos e membros de famílias prosperam às custas de outros. 

Governos bem sucedidos dependem do trabalho mal pago de imigrantes, restringem a imigração e muitas vezes encontram sua riqueza na exploração de outras pessoas, economias e ecossistemas. Governos bem sucedidos talvez dependam da economia de guerra, da produção globalizada e de outros empreendimentos que exploram pessoas que estão “de fora” de suas sociedades. E governos bem sucedidos talvez proporcionem vidas confortavelmente subsidiadas a alguns cidadãos às custas de outros cujas oportunidades, participação e voz são negadas.

Similarmente famílias bem sucedidas muitas vezes operam a mesma estrutura de exploração e exclusão. Quantas vezes você já escutou alguém dizer “eu tenho que trabalhar em uma usina nuclear pois tenho uma família para sustentar”. Ou alguma outra justificativa para causar dano social porque tem uma família? Como, por exemplo, “tenho parentes em Israel” ou o sempre horrível “meninos serão meninos”. Ou, no nível mais banal, pessoas que dizem “Desculpe, tínhamos planejado isto há três meses mas agora meu primo está chegando” ou “não posso ajudá-la ou cuidar de você porque um membro da minha família…”. Herança, é claro, é uma das formas mais dramáticas pelas quais as pessoas com famílias são recompensadas às custas de outras pessoas. Guerras são travadas para manter o privilégio familiar: racismo e opressão de classe, em certo sentido, são sistemas de supremacia baseados na família.

Cada vez mais a manutenção de privilégios para um membro familiar em detrimento de não-familiares é normalizado. Então, assim como o governo exclui e pune os não-cidadãos, as famílias excluem e punem as pessoas que não têm famílias. Elas prosperam ao privar outros. E isso é muito fácil de se fazer, se faz praticamente sem esforço. Mas é ainda mais interessante observarmos como más famílias e maus governos ferem os outros.

Quando os governos são corruptos, seus próprios cidadãos sofrem. Os governos roubam as pessoas ou o próprio governo está sob controle corporativo. Ou o próprio governo é uma máquina falida que não pode nem mesmo servir suas próprias necessidades burocráticas. As pessoas sofrem e isso pode levar a uma revolta da sociedade civil, como estamos vendo ao redor do mundo nesse momento.

À medida que a comunidade queer se torna mais e mais saturada de “valores familiares”, e imperativos familiares, vemos um privilegiamento crescente da “família”, mesmo quando corrupta e prejudicial, em detrimento de uma comunidade de amigos.

Existem consequências políticas, é claro. Obviamente, se estivéssemos divididos em unidades familiares privatizadas durante a crise da AIDS, nunca teríamos conseguido nos organizar de forma tão eficaz como fizemos. Foi a relação comunitária que tornou possíveis as bem sucedidas transformações sociais.

Mas estou examinando isso também em termos das consequências emocionais. O privilegiamento de relações familiares destrutivas pelos amigos é tão prejudicial em termos emocionais e psicológicos dentro da comunidade queer, quanto o é para a sociedade heterossexual.

Sei que é difícil, mas para abordar isso temos que incorporar um tipo de fala realista e humanista sobre dor psíquica, ansiedade, projeção e trauma no modo pelo qual entendemos as famílias. Você não pode entender as políticas da família se as questões emocionais são ignoradas.

Vivo em uma cultura, a cidade de Nova Iorque, onde é fácil reconhecer o papel central da dor psíquica nos comportamentos das pessoas. Talvez isso ocorra porque Nova Iorque foi o ponto de chegada de uma geração pioneira de psicanalistas que fugiram do fascismo. Eles se acomodaram e ficaram e, como consequência, aprender a pensar terapeuticamente é uma parte estruturante dessa cultura. Ser um adulto, no meu mundo, é em parte adquirir uma compreensão tácita de que as pessoas talvez façam coisas porque estão deprimidas ou ansiosas ou compulsivas – e vemos esse reconhecimento como compassivo e realista. É amável, carinhoso e perspicaz dizer que alguém fez algo cruel ou destrutivo porque estava emocionalmente fora de controle, ou tão ansioso que não podia ter pensado direito. Dar-se ao trabalho de compreender que uma pessoa é dissociada ao invés de egoísta, ou ansiosa ao invés de malvada. Essa generosidade de percepção é uma forma piedosa de reconhecimento enraizada na aceitação de que todos somos seres humanos e precisamos da ajuda consciente e compassiva de nossos amigos para pensarmos direito e nos acalmarmos ao invés de atuarmos compulsivamente. Ajudar os outros a se acalmarem é parte de nosso trabalho.

Toda pessoa precisa de cuidado parental. Com isso quero dizer que toda pessoa precisa ser ajudada, encorajada, apoiada para ser responsável por si e pelos outros. Para não se sentirem ameaçadas ao levar outras pessoas em consideração. Para não se apavorarem diante das diferenças. Se a família está se tornando o novo estado-nação queer — a coisa a ser protegida não importa o quanto de dano isso cause — então as pessoas “de fora” das famílias são as mais vulneráveis, aquelas que serão punidas, culpadas, silenciadas e excluídas. 

A terceira e última categoria importante que divide a comunidade queer entre os que têm acesso ao aparelho de estado para punir e os que devem ser punidos é o status do HIV. Vemos uma tendência em direção à criminalização do HIV. Existem leis no Canadá, em alguns estados norte-americanos e em outros lugares que estão surgindo nesse momento pelas quais o Estado está oferecendo às pessoas HIV-negativas a opção de punirem as pessoas HIV-positivas, se elas fizerem sexo e a pessoa HIV-positiva não mencionar seu status sorológico. Anteriormente, quando ambos estavam na ilegalidade, a única opção era aprender como se comunicar uns com os outros. Mas agora o estado está dizendo, “não se preocupe, apenas informe e puniremos aquele que é positivo”.

A criminalização do HIV é a manipulação perfeita da política do “estar com medo” – sendo o caso de Trayvon Martin na Flórida nos Estados Unidos o mais óbvio exemplo do abuso das políticas do “estar com medo”. O assassino, George Zimmerman, estava “com medo” de pessoas negras. Ele se sentia “em perigo” – e, como resultado, assassinou um homem negro desarmado em uma situação em que o assassino se sentia em “auto-defesa”. O estado, poderíamos dizer, permitiu isso. Essa ansiedade patológica, na qual o perpetrador viu a si mesmo como a vítima, foi permitida pela sua comunidade, juntamente com o estado, para conservar o auto-conceito. O que o Estado e a comunidade não proporcionaram foi uma maneira de ajudá-lo a se acalmar, uma estrutura social de intervenção que o impedisse de colocar em ação as suas ansiedades, e que ao invés disso o ensinasse a nomeá-las. Seus amigos e sua família e o estado não o ajudaram a aprender como dizer “me sinto provocado”, “Sinto uma raiva fora do controle” “me sinto obrigado a fazer coisas destrutivas”. Ao invés disso reforçaram sua ansiedade, sua percepção falsa da realidade, sendo suas ações punitivas vistas como razoáveis. Similarmente, para aquelas e aqueles de nós envolvidos com Israel/Palestina escutamos os mesmos argumentos. Os israelitas dizem que têm “medo” e portanto a desumanização dos palestinos é justificada. Quando pessoas ansiosas falam que estão com “medo”, elas se isentam da necessidade de negociar.

Mas as feministas tomam a responsabilidade de dissiparem o medo, nós não o alimentamos. Estamos envolvidas nas difíceis mas humanizantes discussões que ajudam as pessoas a se deslocarem de suas posições e construírem vidas de autenticidade e profundidade. Nós não conspiramos contra pessoas, não interrompemos processos humanizantes, e não marginalizamos. Feminsitas sabem que enfrentar e lidar com problemas é a base da mudança progressiva. Isso se aplica a governos, famílias, comunidades, amantes e amigos. Punição apenas aprofunda e adia o conflito e a ansiedade. A repressão nunca fez com que as pessoas andassem para frente. Quanto mais difícil é punir os outros, mais a pessoa procura soluções equitativas. 

Então nessas três arenas: Cidadania, família promovida pelo governo e criminalização do HIV, aqueles “de fora” se tornam os novos queer, a nova ameaça, o novo objeto abjeto no qual concordamos nos projetar, e que é agora vulnerável para o estado, pela família queer – que não se sente mais ameaçada pelo estado – e que agora se identifica com o estado. Pelo cidadão queer que quer proteger sua supremacia racial, pelo queer HIV-negativo que não quer a responsabilidade de se comunicar. Então, como o estado, eles se sentem em perigo em parte por causa dessa nova experiência de dominância – o “medo” acentuado (i.e. desdém) do outro.

Se sentir ameaçado não é o mesmo que estar ameaçado. Sentimentos sem justificativa são um privilégio da dominação. Somente aqueles que desdenham não têm que justificar. O desdém os isenta da necessidade de serem responsáveis. São as pessoas na ponta receptora da punição que são culpadas por tudo. Dessa forma, o modo como a família se sente talvez se torne mais importante do que a verdade. O estado se sente ameaçado, a família se sente ameaçada. A comunidade queer se sente ameaçada. Eles usam uma retórica baseada na “violência” quando não há violência. Ao mesmo tempo, muitas pessoas em nossa comunidade estão lidando com a violência real, e contudo não tem nenhum aparato.

Então o exército de amantes é agora um exército de cidadãos e famílias e de HIV-negativos. Na realidade eles estão a serviço das famílias. A milícia das famílias, e eles estão a serviço do estado. Como o verdadeiro exército. O exército de amantes, ali para salvarem a família. Usando a retórica da ameaça, do medo e da violência. Mas desde quando a comunicação é o mesmo que a violência? Eu diria que nunca.

Então, quais são as implicações? Temos que ajustar a estória que contamos sobre quem pensamos que somos. Aquelas e aqueles de nós que são abertamente queer e querem continuar uma transformação progressista temos que alterar nossos posicionamentos, de forma que nosso comprometimento se alinhe com quem está realmente em perigo: as/os não-cidadãos, os/as em ocupação, pessoas “fora” da família, pessoas que são vitimizados dentro das famílias, pessoas que são HIV-positivos. Aquelas e aqueles de nós que não são queer, e ainda assim querem uma visão totalmente liberacionista, temos que re-desafiar o conceito que temos de nós mesmos de forma a não apenas apoiar o comportamento LGBT que nos faz lembrar de nós mesmos, mas abrir espaço e de fato insistir na ampla gama de variação humana sem ter que ser pessoalmente replicados ou reafirmados.

É uma questão de consciência. De conscientização. E como acontece com todas as ansiedades, políticas e pessoais, há uma responsabilidade grupal no compromisso com a sensibilização que é essencial à justiça, necessária para a transformação progressista e consistente, o constante desafio do feminismo.

Obrigada.

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